Há alguns anos atrás apresentamos dezenas de entrevistas realizadas à notáveis e eminentes fotógrafos especializados em Arquitetura em nossa seção Fotografia e Arquitetura, onde tivemos a oportunidade de compartilhar com nossos leitores curiosidades acerca dos profissionais que diariamente colaboram com o ArchDaily e que são responsáveis por compartilhar sua particular visão ao trabalho idealizado por inúmeros escritórios de arquitetura e por vezes, não passíveis de visitação. Hoje, 19 de Agosto, Dia Mundial da Fotografia, é com grande satisfação que anunciamos a retomada de novas entrevistas mensais com fotógrafos emergentes, profissionais já consagrados neste campo e também, novas conversas com algúns profissionais anteriormente já entrevistados através da revisitação de sua carreira nos últimos anos.
Em nossa primeira entrevista deste ano, convidamos o arquiteto bahiano e fotógrafo de arquitetura, Manuel Sá. Vencedor do Prêmio IAB-SP 2018 - 75 Anos na categoria Fotografia de Arquitetura e Cidade, atualmente vive na cidade de São Paulo e realiza registros para escritórios em São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro. Leia a seguir a entrevista completa e veja também algumas das belas fotografias deste jovem fotógrafo:
Matheus Pereira: Do conjunto de fotógrafos brasileiros especializados em arquitetura, muitos são arquitetos de formação e iniciaram suas experimentações fotográficas ainda no ambiente acadêmico. No seu caso, como e quando começou seu interesse pelo campo da Fotografia e porque decidiu tornar-se arquiteto-fotógrafo?
Manuel Sá: Brinco que o sketchup me fez virar fotógrafo. Meu interesse começou na faculdade de arquitetura, enquanto estudava programas de modelagem 3d. Eles possuem opções de câmeras com abertura de lente, f-stops e isos e eu achava tudo isso um mistério tão grande quanto diminuir o tempo de render. Lembrei que meu pai sempre tinha uma câmera na mão para registrar a família com essas configurações, dai comprei uma zenit 122 e alguns filmes para fotografar projetos arquitetônicos em Salvador, Rio e São Paulo que na época comecei a conhecer nas aulas de história da arquitetura. Não existia a menor pretensão de virar fotógrafo, mas apenas de entender como a câmera funcionava.
Matheus Pereira: Ainda hoje, realiza projetos de arquitetura? Se sim, a linguagem fotográfica alterou sua maneira projetual de conceber o espaço arquitetônico?
Manuel Sá: Realizo projetos de arquitetura de maneira mais pontual, sejam casas, interiores ou concursos e sim, a fotografia alterou minha maneira de projetar. Ao trabalhar com fotografia passei a conviver, digamos assim, com nuances e mudanças das luzes ao longo do dia e elas são essenciais no controle da atmosfera do projeto. Comecei a respeitar mais a saudável dificuldade que Álvaro Siza tem de decidir onde fará uma abertura para uma janela em um projeto. Não é fácil nem trivial, de fato. Partindo disso, a maneira como cada material reage a luz natural e artificial é delicadíssima. O respeito pelas proporções também. No final do dia, arquitetura é arquitetura e fotografia é fotografia, mas existem trocas muito ricas entre esses campos.
Matheus Pereira: No livro "Photography and Architecture" (1961), Eric Samuel de Maré classifica a fotografia de arquitetura em três categorias: documental, ilustrativa e autoral. Em seu ponto de vista, a Fotografia de Arquitetura é simplesmente documental ou permite apresentar camadas artísticas?
Manuel Sá: The Night View, de Berenice Abbott, para mim é o exemplo perfeito de uma foto que ultrapassa o simplesmente documental, chegando no autoral. Ela mostra uma Nova Iorque muito maior que a Nova Iorque real, vivida no cotidiano. Pensar no impacto que essa foto promoveu no mundo quando feita em 1934 é incrível. Não é um mero documento, ela cria um desejo, nos move, ou no mínimo cria uma curiosidade. É uma fotografia cultural e artística que continua extremamente viva. Toda boa fotografia de arquitetura parece ser fácil, mas não é. Ela flerta e tensiona campos como retrato, pois cada arquitetura tem uma personalidade, paisagem, pois está inserida numa, natureza morta, pois é inanimada, moda, já que pode criar uma tendência e arte, pois pode questionar assuntos muito profundos.
Matheus Pereira: Ao longo das últimas décadas, e especialmente com a virada do século XX ao XXI, diferentes vertentes e narrativas foram desenvolvidas dentro do campo da Fotografia de Arquitetura por alguns notáveis profissionais. Como você definiria sua narrativa fotográfica?
Manuel Sá: É extremamente difícil pra mim fazer uma autocrítica, mas sinto que vivo entre dois mundos: na fotografia de arquitetura comercial, onde busco equilibrar o uso cotidiano de um projeto com as decisões e estratégias adotadas pelos arquitetos e na fotografia autoral, onde algumas regras da fotografia de arquitetura podem ser quebradas. As vezes acho que um campo interfere no outro, o que é muito interessante no sentido de estimular desafios e zonas de desconforto.
Matheus Pereira: Qual o seu processo prévio ao registro de uma obra? Conversa com os arquitetos na tentativa de compreender o partido projetual e posteriormente tentar explicita-lo através das imagens?
Manuel Sá: Busco sempre compreender o partido projetual. Ouvir o arquiteto é essencial, pois cada projeto é um desafio cheio de conquistas, derrotas e mutações. Algumas coisas que nascem no papel não se concretizam na obra e gosto de poder entender isso, já que também sou arquiteto. No final do dia, fotografo a obra realizada, mas perceber as intenções muitas vezes fortalece essa explicação fotográfica.
Matheus Pereira: De acordo com o texto "El Ojo del Arquitecto", de Alberto Campo Baeza, “Um arquiteto sem um fotógrafo não é ninguém. Um bom arquiteto sem um bom fotógrafo não é nada. Os melhores arquitetos são, em parte, aquilo que os fotógrafos os tornaram. [...]”. Para você, é possível produzir arquitetura através de imagens?
Manuel Sá: É uma afirmação extremamente sedutora, mas verdadeira. Peter Eisenman brinca que se Corbusier não tivesse feito os livros promovendo sua arquitetura, provavelmente nunca saberíamos dessas obras tão essenciais, pois estariam escondidas por ai em cantos da França para serem descobertas ao acaso. De alguma maneira, é o que Campo Baeza quer dizer. A Villa Savoye circulou o mundo e é praticamente parte de um imaginário coletivo de arquitetos e entusiastas, mas proporcionalmente poucas pessoas visitaram essa obra de fato. Gosto de pensar que quando uma foto de arquitetura é muito boa, você é sugado para aquele projeto e nem raciocina que aquilo na verdade foi feito por alguém que passou um bom tempo equilibrando tudo num enquadramento.
É possível produzir arquitetura através de imagens a partir do momento que fique claro que essas imagens não são arquiteturas e sim fotografias, algo como ter a clareza óbvia que um desenho de arquitetura também não é arquitetura. Existe uma intenção na altura da câmera, na abertura da lente, na iluminação, contrastes e no controle das distorções e fugas de luz e de cor que fala mais sobre técnicas fotográficas que arquitetura. A grande questão, entretanto, é a seguinte: é impossível fotografar plenamente um grande projeto de arquitetura. É impossível fotografar uma obra do Siza, do Tadao Ando ou do Zumthor por completo. É como se eles enganassem a câmera. Só é realmente possível produzir arquitetura visitando arquitetura.
Matheus Pereira: Desde o surgimento da Fotografia no século XIX até os dias de hoje, muita coisa mudou. Antes, obras que fotografadas levavam um tempo considerável para serem conhecidas por grande parte do público através das publicações impressas, hoje, na chamada Era Digital, permitem ser vislumbradas em todo o mundo num impressionante curto período de tempo através da internet. Em sua opinião enquanto arquiteto-fotógrafo, como as mídias e veículos digitais colaboraram para a apresentação da produção arquitetônica contemporânea?
Manuel Sá: A era digital democratiza o acesso e enriquece o repertório arquitetônico, sem dúvidas. Se analisarmos a produção contemporânea brasileira de norte a sul feita por arquitetos jovens, com menos de 50 anos, a qualidade é incrível. Entretanto, continua evidente o fato de que o arquiteto projeta suas memórias, aquilo que é sensível a sua percepção, aquilo que permanece. Ter inúmeras referências é incrível, mas a questão é: como escolher a melhor solução para algo tão específico quanto um projeto? A história da arquitetura nos mostra bem que repetir nunca é repetir.
Matheus Pereira: Em termos técnicos, acredita que a inserção de novas tecnologias e equipamentos, como é o caso dos drones, alterou a maneira como o espaço é documentado?
Manuel Sá: Sim, pois o drone também deixa evidente o entorno imediato de um projeto, sua implantação tão estudada em plantas, o paisagismo, as coberturas, etc. É natural que um equipamento tecnológico novo altere a percepção de um projeto, já que cada foto carrega uma quantidade gigante de informações, como métodos construtivos, geografia, hábitos sociais e culturais. A visão que o drone oferece sempre existiu desde as clássicas perspectivas aéreas desenhadas, ou bird’s eye view, ou depois nas fotografias aéreas feitas por helicópteros, mas agora o acesso está mais fácil, permitindo mudanças mais rápidas na percepção do espaço documentado.
Matheus Pereira: Em dezembro de 2018, seu conjunto de fotografias da Praça das Artes, Parque Ibirapuera, Casa do Carnaval, Sesc Pompéia, Apartamento no Edifício Eiffel e Casa QP foi vencedor da Categoria Fotografia de Arquitetura e Cidade do Prêmio IAB-SP 2018 – 75 anos. Na ocasião, o júri composto pelos fotógrafos de arquitetura Bebete Viégas, Cristiano Mascaro e Mauro Restiffe, declararam a escolha a partir da “[..] qualidade do conjunto das imagens, pelo domínio da técnica e pelo olhar cuidadoso do fotógrafo. [...]. O autor realiza uma composição atenta aos movimentos da cidade e às pessoas que a habitam.”. Como você definiria os chamados movimentos da cidade na documentação do objeto arquitetônico em seu trabalho?
Manuel Sá: Esse prêmio tem uma importância essencial porque permitiu deixar mais evidente questões que não eram tão claras assim para mim e só posso ser grato pela generosidade desses 3 grandes fotógrafos. Creio que os movimentos da cidade nas fotografias que documento lidam com uma realidade pré estabelecida, pois fotografo o que já existe, mas também busco evidenciar algo que está se tornando. Seja através da presença de uma pessoa, ou de uma pequena relação da obra com a cidade imediata ao seu redor, a arquitetura tem o poder de dar novos significados a um entorno conhecido. Com essa consciência, creio que isso introduza uma pausa, uma experiência menos reduzida de tempo na observação de uma foto. Sempre me pergunto o que faz uma foto ser mais observada que outra numa exposição, numa revista ou no instagram e a resposta para essa pergunta nunca é fácil.
Matheus Pereira: Tecnicamente, tem predileção por equipamentos e/ou escolhas de horários aos registros, enquadramentos, inserção de escala humana, entre outros recursos típicos da fotografia de arquitetura?
Manuel Sá: Enquanto fotógrafo, as questões mais importantes envolvem o contexto, o espaço, a luz e as tectônicas. Utilizo as lentes tilt shift da canon 90% do tempo porque elas permitem muitas opções de enquadramento. Sobre os horários, poder explorar uma casa, por exemplo, do nascer até a hora azul é ideal, já que o percurso solar oferece diversas situações para as composições. A presença de pessoas também é extremamente rica não apenas por uma empatia mais imediata, mas pela sensação de escala.
Matheus Pereira: Da integridade do conjunto de obras fotografadas em sua carreira até hoje, qual foi o projeto que apresentou maior dificuldade em registrá-lo e por quê?
Manuel Sá: A Fundação Iberê Camargo, porque é uma arquitetura que muda a cada passo. As obras de Siza possuem uma relação com o percurso arquitetural que é impossível de capturar com uma fotografia, já que o caminhar faz parte essencial de qualquer projeto dele.
Matheus Pereira: Nos últimos anos, temos acompanhado o desenvolvimento de uma série de equipamentos fotográficos com baixo custo, bem como novas modalidades fotográficas, como é o caso da Fotografia Mobile. Em sua opinião, qual a importância da democratização fotográfica?
Manuel Sá: O impacto da democratização de qualquer tecnologia é profundo. Viver numa sociedade baseada em uma linguagem visual é recente, mas podemos ver mudanças comportamentais nos nossos hábitos e desejos que são evidentes. Hoje falamos por fotos por causa dessa democratização.
Matheus Pereira: Que dica daria para aqueles(as) que querem iniciar sua vida profissional como fotógrafo(a) especializado(a) em arquitetura?
Manuel Sá: Para iniciar a vida profissional, um bom caminho é fazer trabalhos para amigos arquitetos em troca de experiência. É essencial começar com uma rede segura de pessoas conhecidas e nunca realizar trabalhos para estranhos de graça. Outra dica é fotografar obras públicas em momentos diferentes do dia. Com isso, um portfólio sólido começa a acontecer. Buscar divulgação dos trabalhos em sites e revistas também ajuda muito. Além disso, é essencial buscar uma auto-crítica constante, pois é um trabalho extremamente solitário.
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